“Existiu, em tempos que lá vão, do porto da
Barquinha até Segade, uma estrada denominada dos neveiros, percorrida e sentida pelos mercadores
que faziam da actividade do transporte da neve até ao nosso porto ribeirinho, o seu modo de
vida acidentado. Segade era, e é, um pequeno povoado do Concelho de Miranda do
Corvo, onde o carregamento inicial era feito, por razões de comodidade,
supõe-se, visto que os poços de recolha da neve, para esse efeito, situavam-se
um pouco mais além, em plena serra da Lousã. Já iremos abordar, documentalmente
essa questão. A importância desta rota dos neveiros tinha a sua própria visibilidade nas preocupações das justiças concelhias, a dar fé à circunstância
de se achar assinalada por meio de marcos indicadores do seu preciso trajeto, o
que pode justificar, também, a existência secular desse fenómeno extraordinário
do transporte da neve a tão grande distância. Havia um desses marcos, erguido desde
o início dessa rota (creio eu) nas proximidades da defunta cerâmica do Moinho
de Vento. Era o segundo desse percurso, visto que o primeiro achava-se
levantado dentro da nossa vila, ali mesmo ao lado do Ferro de Engomar, (como se
dizia no passado) ligeiramente acima do chafariz. Ali era o início da celebrada
estrada dos neveiros, a partir do Porto da Barquinha. O primeiro troço
contava-se até à cerâmica, e o marco que orgulhosamente o assinalava ostentava,
em caracteres legíveis para o viajante, a legenda “ Barquinha a Segade”.
O alargamento da estrada processado há uns anos atrás, obrigou à sua
remoção. Por motivos de facilidade, de desprezo e de afrontamento às virtudes
do património concelhio, atiraram-no para o valado. Do mal, o menos! Ali dormiu
sestas e sestas, noites de geadas e de luares, como inutilidade oficial.
Tive a tentação de o levar para o meu pequeno jardim, resguardando-o de
vandalismos e de cobiças, mas entendi, que, fazendo parte do património e das
memórias históricas desta terra, o melhor seria questionar os donos do poder
local da época, chamando-lhes a atenção para lhe darem destino certo e coerente.
Assim o fiz e assim o fizeram os governadores de então.
Para onde? Não sei! Ainda agora podem ser vistos os
sulcos deixados no valado pelos rodados do dumper que o transportou.
O marco, entretanto, levou sumiço. Procurei-o, agora, por espirito de curiosidade, no
babilónico depósito dos espólios patrimoniais da arqueologia local, sem
sucesso. Repousam lá, graças a Deus, alguns outros marcos delimitadores das
fazendas da Ordem de Cristo nos montes do concelho, postos a descoberto por um
incêndio Florestal, há uns anos atrás. Fiz idêntica diligência no actual parque
de viaturas da Câmara Municipal e outrora depósito provisório de pedras velhas
e antigas, úteis e inúteis, sem melhor resultado. O marco deve ter sido alvo do
camartelo municipal, à semelhança do que aconteceu aos pelourinhos dos extintos
concelhos da Atalaia e de Tancos, procedimento reprovável de uns autarcas do
século XIX, acto merecedor de palavras duras e desassombradas do Dr. Xavier da
Cunha. Hei-de falar, sobre o assunto, proximamente.
Essa estrada dos neveiros não era nenhuma ficção,
se bem que o pareça pelo extraordinário das suas memórias. Alexandre Herculano,
nomeado comissário régio para a inventariação do património documental do País,
disperso, abandonado e a saque nos cartórios dos extintos conventos, inicia a sua
peregrinação precisamente no Porto da Barquinha, no dia 14 de Junho de 1853.
Curiosamente, a comitiva faz-se a caminho a cavalo, como meio de transporte convenientemente
indicado para o vencimento dos escolhos e dificuldades dos locais a percorrer.
A comitiva quando chega à Lousã, desloca-se à
serra, provavelmente em demanda de um conventinho ali perdido e é então que
depara com os poços nas proximidades, destinados à recolha da neve. Fixemos as
impressões de Herculano, no dia 20 de Julho:
“Viagem à serra da Lousã. Ajunta-se a caravana na
aldeia do Fiscal, nas faldas da serra. Vista cortada pelo nevoeiro para o norte.
Passeio até à montanha da neve. Os depósitos – uma ermida; absurdo de um templo
no cume de uma montanha. As duas montanhas estão unidas por uma lomba de onde
nascem duas ribeiras em sentido oposto para poente e nascente e que divide os
três concelhos de Lousã no noroeste e norte, o de Góis ao nascente e o de
Figueiró ao sul e sudoeste. As montanhas só de mato rasteiro. Os poços de neve num
recôncavo: como se vai derretendo em volta dos poços e dando uma fonte perene:
como a apanham mulheres: chegou este ano em Fevereiro, a 14 pés de altura no
recôncavo. É transportada em carros para a Barquinha. Modo singular de descerem
os carros com mato do alto da serra: o juntar no barracão junto ao poço e o sorvete
preparado ali.” Este episódio ilustra a funcionalidade do sistema, ainda nessa
data, com as características e condicionantes próprias de um transporte tão
específico. Específico e enigmático nos processos de transporte de tão preciosa
e delicada carga, ao longo de tão larga distância. Dificilmente se percebe,
ainda hoje, que técnicas, que saberes estavam ao alcance
desses mercadores, para lhes permitirem, com inteiro sucesso, a ousadia de conduzir a neve
até ao porto da Barquinha. Mas, mais desconcertante do que os desafios do
transporte tão complicado e moroso a partir da Lousã é o de uma nova e
impensável rota, esta da Serra da Estrela, desde a Covilhã e bastante mais
antiga, no princípio do século XVII, e, espanto dos espantos, tem o porto da
Barquinha como destino e ponto convergente de embarque fluvial para Lisboa!!!
As notas deste documento, recolhidas através do
sistema de informação para o Património Arquitectónico (Núcleo Urbano da Covilhã) dizem o
seguinte: “1619 – A câmara de Lisboa faz contrato com Paulo Domingos, oficial de neveiro,
que consistia em levar para a capital, 96 arrobas de neve da Serra da Estrela
para o fornecimento diário de 1 de Junho e 30 de Setembro; a neve retirada ia
em carros até à Barquinha e daí em barcos até Lisboa, onde era guardada em
poços, havendo um junto do convento da Graça e outro no Castelo de S. Jorge.”
A particularidade dos locais de recolha em Lisboa,
demostra quão valioso era o produto, a raridade do acesso ao seu consumo, transformado em
sorvetes, e, por certo, só acessível a gente de algo no início do seu
aparecimento e comercialização, na capital do reino.
A Enciclopédia Luso Brasileira, tomo 18, página
670, refere este sucesso de 1619, preferindo a designação de Domingues em vez de Domingos como
oficial neveiro e acrescentando a informação com a nota de que um facto tão
relevante estaria relacionado com a vinda de Filipe III a Lisboa. Dizem as
crónicas, a documentação conhecida, que a moda do sorvete terá surgido em
Lisboa a partir deste episódio, importada de Itália. A novidade alargou-se em clientela
nos finais desse século e no seguinte, de tal modo, que sendo a procura
significativa,
deu origem ao aparecimento do negócio da neve. O
oficial neveiro, o homem que no cimo da pirâmide manipula o processo, dá corpo
a uma prosperidade que mobiliza muita gente, em torno da profissão. O sucesso
garantido exige a busca de soluções e a procura de novas fontes de
abastecimento.
A estrada dos neveiros da Barquinha é a resultante
dessa imperiosa necessidade e terá surgido, nos finais do século XVII, quando a
vulgaridade do sorvete atinge uma popularidade e uma dimensão lucrativa
apreciável. Este singular negócio da neve, que teve, desde sempre, o porto da
Barquinha como centro convergente, por razões ponderosas que nos escapam,
levanta algumas pertinentes interrogações.
A primeira das quais e a mais ambiciosa de todas
elas é a de que, ao contrário do que sustentam alguns autores, a Barquinha não
foi um parceiro menor em importância, relativamente aos seus vizinhos, desde
quando é conhecida como povoado.
O seu natural crescimento não é casual mas
sustentado por condições de acessibilidade e por uma geração de povoadores com
os olhos bem abertos e despertos para as potencialidades e oportunidades dos
negócios da auto-estrada do Tejo.
O cruzamento da informação atesta essa realidade em
três ou quatro episódios sequenciais.
O primeiro, em 1615, data do crisma de cinco
crianças da Barquinha. 1619, a neve recebida das faldas da Serra da Estrela. 1620, segundo Jorge
Gaspar (1972) num trabalho de investigação apontando a Barquinha, entre outras,
como das povoações que asseguravam o abastecimento de Lisboa. 1625, um casamento
realizado na Ermida de Nossa Senhora do Reclamador, atestando a vitalidade de uma povoação de
cristianas raízes.
Afinal não somos tão novos como o pretendem nem tão
pouco importantes como povo ribeirinho.”
António Luís Roldão
Artigo publicado no Jornal Novo Almourol - SETEMBRO
2013 | n.º 389
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