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ATALAIA, Vila Nova da Barquinha, Portugal
Vivendo nesta terra há 30 anos vou perguntar à história e à tradição qual a origem desta localidade. Desejo saber quem neste atractivo sítio erigiu a primeira construção, quais as obras que foram nascendo, a sua idade e as mãos que as edificaram, quais os seus homens ilustres e os seus descendentes, quem construiu as estradas, os caminhos, as pontes e as fontes. Quão agradável será descobrir em cada pedra os nossos antepassados levantando com palavras o sonho do nosso futuro. Atalaia, 18-11-2007.

6.10.13

A neve e o porto da Barquinha

“Existiu, em tempos que lá vão, do porto da Barquinha até Segade, uma estrada denominada dos neveiros, percorrida e sentida pelos mercadores que faziam da actividade do transporte da neve até ao nosso porto ribeirinho, o seu modo de vida acidentado. Segade era, e é, um pequeno povoado do Concelho de Miranda do Corvo, onde o carregamento inicial era feito, por razões de comodidade, supõe-se, visto que os poços de recolha da neve, para esse efeito, situavam-se um pouco mais além, em plena serra da Lousã. Já iremos abordar, documentalmente essa questão. A importância desta rota dos neveiros tinha a sua própria visibilidade nas preocupações das justiças concelhias, a dar fé à circunstância de se achar assinalada por meio de marcos indicadores do seu preciso trajeto, o que pode justificar, também, a existência secular desse fenómeno extraordinário do transporte da neve a tão grande distância. Havia um desses marcos, erguido desde o início dessa rota (creio eu) nas proximidades da defunta cerâmica do Moinho de Vento. Era o segundo desse percurso, visto que o primeiro achava-se levantado dentro da nossa vila, ali mesmo ao lado do Ferro de Engomar, (como se dizia no passado) ligeiramente acima do chafariz. Ali era o início da celebrada estrada dos neveiros, a partir do Porto da Barquinha. O primeiro troço contava-se até à cerâmica, e o marco que orgulhosamente o assinalava ostentava, em caracteres legíveis para o viajante, a legenda “ Barquinha a Segade”.
O alargamento da estrada processado há uns anos atrás, obrigou à sua remoção. Por motivos de facilidade, de desprezo e de afrontamento às virtudes do património concelhio, atiraram-no para o valado. Do mal, o menos! Ali dormiu sestas e sestas, noites de geadas e de luares, como inutilidade oficial.
Tive a tentação de o levar para o meu pequeno jardim, resguardando-o de vandalismos e de cobiças, mas entendi, que, fazendo parte do património e das memórias históricas desta terra, o melhor seria questionar os donos do poder local da época, chamando-lhes a atenção para lhe darem destino certo e coerente. Assim o fiz e assim o fizeram os governadores de então.
Para onde? Não sei! Ainda agora podem ser vistos os sulcos deixados no valado pelos rodados do dumper que o transportou.
O marco, entretanto, levou sumiço. Procurei-o, agora, por espirito de curiosidade, no babilónico depósito dos espólios patrimoniais da arqueologia local, sem sucesso. Repousam lá, graças a Deus, alguns outros marcos delimitadores das fazendas da Ordem de Cristo nos montes do concelho, postos a descoberto por um incêndio Florestal, há uns anos atrás. Fiz idêntica diligência no actual parque de viaturas da Câmara Municipal e outrora depósito provisório de pedras velhas e antigas, úteis e inúteis, sem melhor resultado. O marco deve ter sido alvo do camartelo municipal, à semelhança do que aconteceu aos pelourinhos dos extintos concelhos da Atalaia e de Tancos, procedimento reprovável de uns autarcas do século XIX, acto merecedor de palavras duras e desassombradas do Dr. Xavier da Cunha. Hei-de falar, sobre o assunto, proximamente.
Essa estrada dos neveiros não era nenhuma ficção, se bem que o pareça pelo extraordinário das suas memórias. Alexandre Herculano, nomeado comissário régio para a inventariação do património documental do País, disperso, abandonado e a saque nos cartórios dos extintos conventos, inicia a sua peregrinação precisamente no Porto da Barquinha, no dia 14 de Junho de 1853. Curiosamente, a comitiva faz-se a caminho a cavalo, como meio de transporte convenientemente indicado para o vencimento dos escolhos e dificuldades dos locais a percorrer.
A comitiva quando chega à Lousã, desloca-se à serra, provavelmente em demanda de um conventinho ali perdido e é então que depara com os poços nas proximidades, destinados à recolha da neve. Fixemos as impressões de Herculano, no dia 20 de Julho:
“Viagem à serra da Lousã. Ajunta-se a caravana na aldeia do Fiscal, nas faldas da serra. Vista cortada pelo nevoeiro para o norte. Passeio até à montanha da neve. Os depósitos – uma ermida; absurdo de um templo no cume de uma montanha. As duas montanhas estão unidas por uma lomba de onde nascem duas ribeiras em sentido oposto para poente e nascente e que divide os três concelhos de Lousã no noroeste e norte, o de Góis ao nascente e o de Figueiró ao sul e sudoeste. As montanhas só de mato rasteiro. Os poços de neve num recôncavo: como se vai derretendo em volta dos poços e dando uma fonte perene: como a apanham mulheres: chegou este ano em Fevereiro, a 14 pés de altura no recôncavo. É transportada em carros para a Barquinha. Modo singular de descerem os carros com mato do alto da serra: o juntar no barracão junto ao poço e o sorvete preparado ali.” Este episódio ilustra a funcionalidade do sistema, ainda nessa data, com as características e condicionantes próprias de um transporte tão específico. Específico e enigmático nos processos de transporte de tão preciosa e delicada carga, ao longo de tão larga distância. Dificilmente se percebe, ainda hoje, que técnicas, que saberes estavam ao alcance desses mercadores, para lhes permitirem, com inteiro sucesso, a ousadia de conduzir a neve até ao porto da Barquinha. Mas, mais desconcertante do que os desafios do transporte tão complicado e moroso a partir da Lousã é o de uma nova e impensável rota, esta da Serra da Estrela, desde a Covilhã e bastante mais antiga, no princípio do século XVII, e, espanto dos espantos, tem o porto da Barquinha como destino e ponto convergente de embarque fluvial para Lisboa!!!
As notas deste documento, recolhidas através do sistema de informação para o Património Arquitectónico (Núcleo Urbano da Covilhã) dizem o seguinte: “1619 – A câmara de Lisboa faz contrato com Paulo Domingos, oficial de neveiro, que consistia em levar para a capital, 96 arrobas de neve da Serra da Estrela para o fornecimento diário de 1 de Junho e 30 de Setembro; a neve retirada ia em carros até à Barquinha e daí em barcos até Lisboa, onde era guardada em poços, havendo um junto do convento da Graça e outro no Castelo de S. Jorge.”
A particularidade dos locais de recolha em Lisboa, demostra quão valioso era o produto, a raridade do acesso ao seu consumo, transformado em sorvetes, e, por certo, só acessível a gente de algo no início do seu aparecimento e comercialização, na capital do reino.
A Enciclopédia Luso Brasileira, tomo 18, página 670, refere este sucesso de 1619, preferindo a designação de Domingues em vez de Domingos como oficial neveiro e acrescentando a informação com a nota de que um facto tão relevante estaria relacionado com a vinda de Filipe III a Lisboa. Dizem as crónicas, a documentação conhecida, que a moda do sorvete terá surgido em Lisboa a partir deste episódio, importada de Itália. A novidade alargou-se em clientela nos finais desse século e no seguinte, de tal modo, que sendo a procura significativa,
deu origem ao aparecimento do negócio da neve. O oficial neveiro, o homem que no cimo da pirâmide manipula o processo, dá corpo a uma prosperidade que mobiliza muita gente, em torno da profissão. O sucesso garantido exige a busca de soluções e a procura de novas fontes de abastecimento.
A estrada dos neveiros da Barquinha é a resultante dessa imperiosa necessidade e terá surgido, nos finais do século XVII, quando a vulgaridade do sorvete atinge uma popularidade e uma dimensão lucrativa apreciável. Este singular negócio da neve, que teve, desde sempre, o porto da Barquinha como centro convergente, por razões ponderosas que nos escapam, levanta algumas pertinentes interrogações.
A primeira das quais e a mais ambiciosa de todas elas é a de que, ao contrário do que sustentam alguns autores, a Barquinha não foi um parceiro menor em importância, relativamente aos seus vizinhos, desde quando é conhecida como povoado.
O seu natural crescimento não é casual mas sustentado por condições de acessibilidade e por uma geração de povoadores com os olhos bem abertos e despertos para as potencialidades e oportunidades dos negócios da auto-estrada do Tejo.
O cruzamento da informação atesta essa realidade em três ou quatro episódios sequenciais.
O primeiro, em 1615, data do crisma de cinco crianças da Barquinha. 1619, a neve recebida das faldas da Serra da Estrela. 1620, segundo Jorge Gaspar (1972) num trabalho de investigação apontando a Barquinha, entre outras, como das povoações que asseguravam o abastecimento de Lisboa. 1625, um casamento realizado na Ermida de Nossa Senhora do Reclamador,  atestando a vitalidade de uma povoação de cristianas raízes.
Afinal não somos tão novos como o pretendem nem tão pouco importantes como povo ribeirinho.”

António Luís Roldão

Artigo publicado no Jornal Novo Almourol - SETEMBRO 2013 | n.º 389

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