Dizia
eu no artigo ontem publicado que ““Plus
vident oculi quam oculos”, vários olhos vêem mais que um olho.
Nem de propósito, hoje mão amiga da Armada, ramo das forças armadas que
tenho especial afecto por razões profissionais, fez-me chegar o n.º 93, da
REVISTA DA ARMADA, de Junho de 1979, que aborda a questão das estradas de
neveiros e, essencialmente, o ofício (ou arte) dos neveiros e o transporte de gelo
até à Barquinha / Constância.
Um
artigo publicado, em 1979, pelo Dr. Herlander Machado, historiador, poeta,
escritor e etnógrafo, que dou a conhecer no presente blog.
“Quando
os gelados da corte eram feitos com neve da serra da Lousã-Coentral
O ofício dos neveiros
Neveiro
era o ofício dedicado ao aproveitamento da neve para refrescar bebidas e
fabricar doces gelados.
Parece
ser muito antiga essa prática, devendo-se, porventura, aos árabes a iniciativa.
Em
Portugal, o ofício dos neveiros terá conhecido o apogeu durante o século XVIII,
mas há notícia da actividade dos contratadores da neve desde os princípios do
século XVII. Efectivamente, a edilidade de Lisboa contratou, em 1619, com Paulo
Domingues, o fornecimento diário de 96 arrobas de neve, desde 1 de Junho até 30
de Setembro. E teria sido a visita do monarca filipe III de Espanha a causa
desse interesse da câmara de Lisboa. Tirso de Molina, autor dramático espanhol,
que viveu de 1583 a 1648, escreveu no "burlador de sevilha",
referindo-se a Lisboa: nieve da serra da estrela que por las calles apitos
puesta sobre las cabazas la vendem …
Mas
não só a Serra da Estrela forneceu a neve que se vendia em Lisboa. A casa real
veio a consumir neve trazida da serra do coentral (próximo das vilas de castanheira
de pera e da lousã). E também na serra da neve, de Alenquer e Montejunto, se
faria sentir a acção dos neveiros. Este oficio manter-se-ia por largos anos com
épocas de abundância e crises havendo dele notícias relativas a períodos
sucessivos que atingem e até ultrapassam os meados do século XIX. Em rápido
apontamento, salientaremos os seguintes factos: - em 1623, era neveiro da
câmara de lisboa o italiano Marco António Cacilano. Em 1671 esse ofício estava
a cargo de António Correia. Em 1683, era neveiro um tal Nicolau Vaz. Em 1699, o
contratador da neve era o italiano João Baptista Rossati. Em 1717, foi Eugénio
da Cunha o neveiro da casa real, mas, então, era outro - o sargento-mor Manuel
de Abreu Henriques - o contratador da neve. A neve era disputada! E Lisboa
assistiu ao conflito de interesses entre o fornecedor do paço e o neveiro das
lojas da cidade.
Em
1724, era António de Almeida Lebrão o detentor do privilégio de fornecer a neve
à casa real. Em 1733 e 1753 foram, respectivamente, contratadores da neve um
tal marcos Álvares da Costa e uma francesa cujo nome era Catarina Picart. Contemporâneo
desta era o neveiro Julião Pereira de Castro, de quem nos ocuparemos, em especial,
nesta crónica.
Entretanto,
cumpre dizer que nem sempre os neveiros conseguiram satisfazer as necessidades
do consumo, chegando a importar-se neve de Espanha, enquanto, no alto das
serranias portuguesas se orava para que nevasse, pois a recolha da neve se
tornara ganha-pão para alguns dos pobres serranos.
Ainda
existem, quase intactos, três dos sete poços construídos na serra do coentral,
mais concretamente no cabeço do pereiro, hoje preferentemente conhecido por
santo António da neve. São também localizáveis as ruínas dos poços
desmoronados. E no vasto planalto, situado a 1200 metros (altitude que está bem
próxima da que é atingida pelo monte do Trevim que, bem perto dali, constitui o
ponto mais elevado de toda a Serra da Lousã) conserva-se, ainda, uma
encantadora capela dedicada a Santo António. E, na sua fachada simples,
destacam-se o escudo com a coroa real e duas lápides com inscrições ainda bem
legíveis.
Alude
uma das inscrições ao destino das esmolas que ali deixasse o caminhante - para
beneficiações e conservação do templo.
A
segunda lápide tem a inscrição que passamos a transcrever, depois de
actualizada a grafia e de eliminadas as abreviaturas:
Esta
capela do glorioso Santo António de Lisboa a mandou fazer Julião Pereira de Castro
reposteiro do nosso reino da câmara de sua majestade e neveiro de sua real casa
em terra sua ano de 1786.
Considerada
a distância e recordadas as dificuldades de transporte nessa época, bem se
podem imaginar os trabalhos e canseiras exigidos ao pessoal neveiro para,
através de montes, vales e rios, fazer chegar às ucharias reais e aos botequins
de lisboa a neve da serra do coentral.
Actualmente,
é quase desconhecida a história dos neveiros.
E
embora os poços e a capela de Santo António da neve já tenham aparecido, há
anos, nos écrans da televisão, nem por isso foi então divulgada essa história
pois o filme apenas foi apresentado como intermissão, sem palavras, com fundo
musical ...
Os
poços da neve tinham uma profundidade superior a uma dezena de metros. Exibem,
ainda, o aspecto tosco das suas construções circulares e octogonais, cobertas
por cúpulas abobadadas - tudo edificado com pedra negra, da região: uma só
porta, estreita, constituía o acesso.
Utilizando
escadas de mão, de madeira, os homens desciam ao fundo desses poços e, à medida
que neles ia sendo despejada a neve, calcavam-na com pesados maços de madeira -
como os dos calceteiros de hoje.
Empedernida,
isolada entre os paredões alisados pelo estuque, coberta com palha, a neve
conservava-se nesses amplos reservatórios até ao Verão, sem que uma réstea de
sol lhe pudesse chegar.
Eram
as mulheres e os garotos das aldeias vizinhas contratados à jorna, para
acarretar cestas com neve para os poços.
Durante
a maior rispidez da invernia, afadigava-se o mulherio e a garotada das
redondezas na recolha do alvo lençol , caído no vasto planalto de Santo António
da neve - quantas vezes, ao que se diz, só depois de muitas preces.
E,
para reforçar a produção, as enxadas tinham rasgado previamente largos
tabuleiros - as alagoas da tradição popular, onde a água ficava empoçada e
acabava por se transformar em gelo.
Ainda
hoje se podem localizar algumas alagoas, por entre lousas e urzes, mas a maior
parte delas desapareceu quando, em 1971, foi ali construída uma pista para
aviões.
Quando
chegava o verão , a neve era cortada aos pedaços e vinha, em grandes blocos,
para lisboa, envolvida em palha, fetos, serapilheira, ou, até, metida em
caixotes. E, pelos tortuosos carreiros da serra, o transporte era feito em
carros de bois. E desses grandes blocos de gelo - três ou quatro em cada carro
de bois - muito se perdia pelo caminho.
Ao
transporte terrestre - assistido por protecções legais, como as que obrigavam
os povos dos múltiplos lugarejos encontrados pelo caminho a substituírem ou a
repararem rapidamente as carroças danificadas e as que facilitavam a passagem
nas portagens - seguia-se o transporte fluvial, a partir da Barquinha, ou de Constancia.
Muitos
pormenores acerca da actividade dos neveiros andam, ainda, nas tradições
populares da freguesia do Coentral onde, em 1956, aquando da publicação de uma
monografia, denominada "Coentral, terra de encantos", pudemos
recolher muitas informações junto dos que eram então os três únicos
sobreviventes dessa época dos neveiros da região. Eram eles: Maria Lopes. Miranda
(88 anos), Manuel Barata (84 anos) e José Lopes Agostinho (82 anos). E a casa
do neveiro Julião Pereira de Castro - outrora a mais solarenga do Coentral -
ainda lá se conserva, apesar de muito adulterada na sua traça por marcas do
tempo e da incúria e também pelo mau gosto dos sucessivos proprietários.
E,
ao que se diz, há na igreja paroquial do Coentral alguns paramentos e peças de
talha policromada que lhe foram doadas pelo neveiro Julião Pereira de Castro. Em
lisboa, a neve era vendida, à volta de 1780, no botequim da arcada do Terreiro
do Paço, onde hoje se situa o café "Martinho da Arcada" .
Este
foi sucessivamente conhecido por "casa da neve", "casa do café
italiana", "café do comércio" e "café martinho" (nome
do seu possuidor Martinho Rodrigues, que era, em 1810, contratador da neve do Coentral).
Esta
casa tinha, então, um depósito de neve na Travessa da Parreirinha (próximo do
teatro de S. Carlos).
Entretanto,
outros estabelecimentos de Lisboa se tinham dedicado ao negócio da neve.
Segundo
a "Gazeta de Lisboa", vendia-se neve, em 1792, no botequim da "Casa
da Ópera" da Rua dos Condes e, em 1793, também esse produto natural se
vendia no Largo do Rato, na loja de José Rodrigues Ferreira.
Já
no século XIX, há várias alusões às lojas que vendiam neve, sorvetes e demais
doces gelados ... Em S. Roque, vendeu neve o botequim do Tavares. No Rossio,
eram servidos gelados na loja de bebidas do "Madre de Deus". E outros
cafés e botequins, como o "Marrara", o "Minerva das sete
portas", o "Toscano", o "Nicola" e o "Grego"
venderam neve - uns desde o dia 1.º de Maio, outros desde o dia do Corpo de Deus,
como se pode ver nos anúncios que já publicavam na imprensa.
Mas
não só nos doces e nas bebidas era utilizada neve.
Também
os doentes beneficiavam de tratamentos feitos com gelo.
Por
isso, já em 1699 o neveiro João Baptista Rossati (um italiano) se propôs obter
a concessão do privilégio para o fornecimento da neve a Lisboa obrigando-se,
também, a abastecer o hospital de Todos os Santos.
Dois documentos do tempo
de D. José I
Para
a história dos "neveiros reais" e dos celebrados "poços da
neve" do planalto de " Santo António da neve", da serra de Lousã-Coentral,
têm inegável interesse dois documentos divulgados no "distrito de Coimbra"
pelo Dr. Mário Ramos e recordados, no "Diário de Coimbra", alguns
anos mais tarde (em 13-7-1936), pelo Prof. Virgílio Correia, da Faculdade de Letras
de Coimbra. Aqui os transcrevemos:
Eu
el-rei faço saber a vós, Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras ,
do meu conselho, secretário do estado dos negócios do reino e que servis de meu
mordomo mor; que Julião Pereira, neveiro da minha casa me representou que eu
lhe fizera mercê do dito ofício por alvará de 23 de Junho de 1757, sem moradia
nem ordenado, obrigação de dar a neve que fosse necessária todo o ano para a
minha casa a preço de quarenta réis o arratel, em qualquer parte onde eu
estivesse, como também à mais família dela pelo mesmo preço, para o que poderia
tomar as carruagens, bestas e barcos, e tudo o mais que lhe fosse necessário
para a condução da dita neve, a que se lhe não poria dúvida nem embargo algum,
antes lhe teria dado todo o favor e ajuda que ele pedisse. E porquanto as
justiças lhe duvidavam estes privilégios ao dito ofício concedidos, sem os
quais não poderia, na forma das suas obrigações prontamente exercitar, me pediu
lhos reformasse; ao que entendendo: hei por bem e mando a todos os oficiais de
justiça, guerra ou fazenda guardem e façam guardar ao dito Julião Pereira, neveiro
da minha casa todas as regalias, privilégios e isenções que concedi ao dito ofício,
dando-lhe todo o favor e ajuda que ele pedir para o transporte da neve; e que
com as pessoas que trouxer na sua condução não atendão, constando porém quais
são, por certidão do seu mordomo-mor … Lisboa, 3 de Novembro de 1759.
Rei.
Conde de Oeiras. Alvará de reformação de privilégios que V. Magestade manda se
guardem a Julião Pereira, neveiro de sua real casa, na forma que acima se
contém, e foi servido conceder-lhes com o dito ofício.
O
segundo documento, firmado, dez anos após o primeiro, pelo neveiro Julião Pereira,
estabelece o que segue: nomeio a simão Duarte e José Duarte, do lugar dos Poboraes,
termo de Goes, para irem ajuntar neve à real fábrica que se acha no cabeço do Pereiro,
serra da Lousã, e para esses avisarem os mais do lugar do Coentral para acudirem
a ajuntá-la, por ficarem os ditos à vista da serra e verem quando cai a dita
neve como também para irem ver a miúdo que não haja algum prejuízo na dita
fábrica causado pelos pastores ou pessoas que passem, que não quebrem telhas
dos telhados ou outro qualquer prejuízo para logo que suceda se prover de
remédio e para o que lhe concedo todos os meus poderes que neste alvará que são
concedidos para sua Magestade, para que em meu nome possam requerer a todos os
ministros e oficiais de justiça e guerra ou fazenda, tudo o que preciso for
para a boa conservação da neve da dita fábrica. Coentral, 29 de Janeiro de 1769
Julião Pereira.
No
dizer do prof. Virgílio Ferreira, os "poços da neve" merecem pela sua
construção e raridade ser considerados edifícios de interesse público ou,
aproveitando a designação proposta por João José Paulo Pereira, no congresso
(vi congresso beirão - 1936), incluídos no património comum. Entretanto, neste
ano de 1979, verifica-se que ninguém procura salvar das garras do tempo e da
incúria dos homens o que resta da "fábrica" dos neveiros no planalto
relvado de Santo António da Neve, tornado parque de merendas e cenário de
arraiais promovidos pela gente do Coentral. E o forasteiro, ao avizinhar-se da
capela, deixa uma esmola e lê com curiosidade as inscrições existentes nas já
referidas lápides: a esmola que os devotos do glorioso Santo António derem será
aplicada para as obras da reedificação e ornamentos aos seus devotos o
benefício.
Era
assim ... in illo tempore.
Hoje,
ocorre perguntar: - quem salva da incúria e da ruína o que resta da grande
"fábrica da neve do cabeço do pereiro"? os poços da neve da serra da Lousã-Coentral,
ali situados, a dois passos do Trevim (o ponto mais elevado da serra) bem
merecem o interesse de quem de direito, para que se salvaguarde este património
histórico que, se não tem interesse artístico, constitui um valioso testemunho
e recorda interessantes páginas da nossa história - que nos cumpre preservar e
divulgar para que se guarde memória junto das actuais gerações e para que o
labor e as tradições do passado cheguem ao conhecimento dos vindouros.
Herlander
Machado
In
REVISTA DA ARMADA, n.º 93, de Junho de 1979.
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